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Escola no quintal

Universo simbólico da infância, o quintal é uma grande escola dos meninos e meninas do Brasil. É no espaço de terreiros, ruas de terra batida ou asfaltadas, pátios de aldeias, quadras e escadas de áridos condomínios urbanos ou sombras de árvores generosas que as crianças fazem suas experiências primeiras, protagonizam suas aventuras cotidianas, transformam tudo o que encontram em matéria-prima de seu brincar-viver.

Como uma das idealizadoras do Infâncias, projeto dedicado a registrar e documentar o cotidiano e o imaginário das crianças brasileiras (urbanas, ribeirinhas, quilombolas, indígenas, entre outras), tenho viajado por quintais dos muitos Brasis. O projeto investiga diferentes experiências de infâncias, em contextos socioculturais variados. Registra os muitos jeitos de ser criança e de viver a infância, que, segundo Philippe Ariès, é uma construção social e histórica do Ocidente, podendo variar muito conforme o lugar e a sociedade.

Nessas andanças pelo Brasil de dentro, ao lado da jornalista Marlene Peret e do fotógrafo Samuel Macedo, meus parceiros nas estradas das muitas infâncias, assumimos o papel de aprendizes na relação com meninas e meninos, nossos mestres em nos conduzir por seus cotidianos. Nem sempre é fácil – temos que muitas vezes conter gestos, expressões e falas que permearam nossas infâncias e vidas marcadas por visões “adultocêntricas”.

Assim, acompanhamos as crianças em seus quintais. São as crianças que nos apresentam seus percursos diários (nas florestas, nos rios, em seus bairros ou em vilarejos), mostram os frutos de seus terreiros e as técnicas para pescar ou caçar (uma anta na mata, uma pipa no céu), sinalizam os códigos sociais de suas comunidades. O quintal é espaço de descobertas, conflitos, invencionices, é onde exercitam seus jeitos de perceber, sentir e reagir aos outros e ao mundo.

Espiamos como são os processos de seus aprendizados, como a infância é delineada em muitos cantos do país, qual a verdadeira essência desse período tão fundador na vida de todos nós. É preciso ter olhos de ouvir longe e ouvidos prontos para enxergar além no diálogo com as crianças, que têm lógica própria para formular o mundo ao redor. “A criança não sabe menos, sabe outra coisa”, nos conta Clarice Cohn, estudiosa da antropologia da criança.

Os saberes infantis são evidenciados nas aventuras diárias pelos quintais, longe da tutela do mundo adulto, onde as crianças têm autonomia e autoria. Nesse espaço de viver e exercitar a infância, meninos e meninas inventam seus mundos com restos do cotidiano, costurados com pedaços da natureza – de suas habilidosas mãos, nascem barquinhos, carrinhos, piões, papagaios e outros brinquedos. Conhecem de cor(ação) os frutos, as árvores, os bichos dos arredores. Criam mapas afetivos de suas localidades. Ressignificam o cotidiano.

Nas margens do rio Bacajá, afluente do Xingu, morada do povo Xikrin, chegamos em quintais que ocupam principalmente o pátio da aldeia circular. No centro, na casa só ocupada por homens que discutem questões políticas do grupo, circulam meninos de diferentes idades – as meninas ficam mais nos arredores da casa. Se uma criança que por ali transita chora, todos os homens param a mais séria das discussões para acolher o pequeno. Os Xikrin temem que uma criança chore demais. Clarice Cohn, pesquisadora da infância Xikrin, explica que o povo acredita que o karon, que tem uma tradução próxima a “alma”, quando se zanga, pode ir embora e não voltar mais.

Para o povo Xikrin, que se autodenomina mebengokré, os sentidos da audição e da visão são fundamentais no aprendizado de todo indivíduo. Às crianças é permitido circular por todos os lugares e participar de tudo na vida da aldeia – inexiste a “conversa de adulto” – e os Xikrin consideram isso fundamental em seu processo de aprendizado. Dizem que “as crianças tudo sabem porque tudo veem”, explica Cohn. Os adultos acompanham de perto as conquistas das crianças. O que se aprende é guardado no coração, o “lugar do saber”.

Nos quintais, as crianças aprendem na convivência com seus pares, no compartilhamento de habilidades, em experiências que permitem acertar e errar, nos jogos de faz de conta e no fazer da mais pura verdade. Ao acompanhar crianças do povo Araweté em uma incursão pela mata para coletar cacau, logo percebemos como os menores aprendem com os maiores nessa atividade cotidiana de andar na mata, habilidosamente escalar o topo das árvores e colher os frutos maduros. De novo, pouco se fala. No quintal, é o corpo que tem voz.

Das rotas aquáticas do Xingu para as trilhas do sertão cearense, aportamos nos terreiros dos mestres de cultura popular do Cariri. Na região, as crianças crescem fascinadas por manifestações populares como o reisado, verdadeiro brinquedo de cabinha, como é chamado o menino do Cariri. Na terra dos cabinhas, o mestre é aquele que tem a sabedoria vivida e os terreiros são verdadeiras escolas do (con)viver.

Vale lembrar um trecho de um livro que traz a experiência da Casa Redonda, um projeto de educação infantil que surgiu nos anos 1980 numa chácara em Carapicuíba (SP):

“A criança que se encontra nos nossos currículos escolares é em sua maioria um ser sem corpo e sem alma, classificada por idade cronológica, colocada sobre um chão sem terra, aculturada, debaixo de um autoritarismo disfarçado em uma teoria pedagógica, que determina o que deve ser ensinado e como deve ser ensinado, sem qualquer relação de sentido com a vida das crianças. É a escola sem vida que prepara para a vida. Que vida?”

O mundo escolar tem muito a aprender com o universo dos quintais.*

 

Referências bibliográficas

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2.e. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981.

COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

SILVA, Aracy Lopes da. Crianças indígenas – Ensaios antropológicos. São Paulo: ed. Global, 2002.

MEIRELLES, Renata. Giramundo e outros brinquedos e brincadeiras dos meninos do Brasil. São Paulo: Editora Terceiro Nome; 2007.

PEREIRA, Maria Amélia Pinho. Casa Redonda – Uma experiência em educação. São Paulo: Editora Livre; 2013.

 

Texto: Gabriela Romeu

Foto: Samuel Macedo 

* Parte do texto de Gabriela Romeu originalmente publicado no livro “Caindo no Brasil – Uma Viagem pela Diversidade da Educação”, de Caio Dib.

 

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