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A casa azul

“Sai do meio!”, “olha a lapada”, “errou, deita, deita!”. Depois que a chuva deixa o chão de terra do terreiro da Casa Azul batidinho, os meninos se amontoam por ali, braços ligeiros e falas apressadas, para fazer o pião rodopiar em manobras arriscadas. No meio de tamanha agitação, entre os intensos zunidos dos giros do brinquedo e as disputas narradas de forma acalorada pelo meninos, ouvimos um grito lá de dentro: “Augusto, larga aí, cabinha, tá na hora do programa!”.

Augusto é um dos cabinhas que corre os dias pela Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri, lugar onde viver-aprender-brincar-crescer-ser são verbos conjugados com a mesma intensidade. O programa é Submarino Amarelo, que há tempos vai ao ar na Rádio Casa Grande FM. Já a Casa Azul, assim como os meninos-personagens dessa história, é importante protagonista de uma narrativa afetiva que se desenrola no dia a dia de um pedaço de Brasil que se configura em Nova Olinda, cidadezinha sertaneja do Cariri cearense. (Ah, e cabinha é como as crianças são chamadas na região do Cariri. Cabra vira caba, que vira cabinha.)

São muitas as histórias que já ouvi os meninos, os tais cabinhas, narrando sobre suas peripécias na Casa Azul. Ela, a Casa, está nas muitas fotos que as crianças de lá tiram, também surge entre os versos das narrativas infantis escritas em cordel nessa terra de Patativa do Assaré. Talvez, não sei bem, a Casa Azul seja a maior protagonista dessa história contada aqui – e olha que a galeria de personagens ilustres é extensa: as crianças (e as já não mais tão crianças) Miguel, Samuel, Helinho, Aécio (Bilu), Júnior, Fabiana, João Paulo, Aureliano, Yasmin, Samara, Bruninha, Taynara, Letícia, Thiaguinho, Felipim, Thales, Alycia e, claro, Alemberg e Rosiane (menino e menina crescidos que estão na origem de tudo).

Convido então o leitor a entrar nessa Casa e conhecer um pouco tal experiência – se é que isso é possível em tão poucas palavras. Do terreiro onde há pouco os meninos rodavam o pião (sinto ainda o cheiro de terra molhada), adentramos na sala do Memorial do Homem Kariri. Ali, logo somos recepcionados por Cariuzinho, imagem de madeira de um menino índio, antigo cariú, herdado de uma senhora cabocla da região. O indiozinho, imóvel, aparece ao lado de uma das saltitantes crianças (talvez Yasmin, Bruninha ou Thales), provavelmente com a fardinha (o uniforme de camiseta branca e calça vermelha) suja de terra – coisa de criança que brinca.

Na parede da mesma sala, Santo Antônio, São Miguel e São Jorge se misturam com as fotos antigas, já esmaecidas, de duas crianças, um menino e uma menina – símbolo da eterna infância, uma Terra do Nunca sertaneja. São as imagens de Alemberg Quindins e Rosiane Limaverde, casal que nos anos 80 se dividia entre a vida nos festivais de música e as pesquisas das narrativas míticas do Cariri a bordo de uma moto. Nessas andanças, foram reunindo histórias, fotos, objetos, peças da arqueologia (vasos de cerâmica, ferramentas de pedra) da região. Assim, criaram em 1992 um memorial numa casa do século 18, construção que deu origem à Nova Olinda, onde vivia Neco Trajano, avô de Alemberg. Era um jeito de preservar suas origens e retribuir tudo àquela gente.

Das janelas laterais da Casa Azul, avistamos o Parque do Véio Leonso, onde as crianças brincam de escorregar e balançar, entre o entra-e-sai das atividades nas salas que abrigam diversos laboratórios da Fundação Casa Grande. Numa se faz gibi, na outra há uma DVDteca com filmes de arte, numa terceira aprendem arqueologia. Há ainda biblioteca, estúdio de edição de audiovisual e teatro, este último numa construção que remete às antigas casas de engenho da região. Todo canto da Casa tem uma história a ser contada – e diz a lenda que a Tapera (em tupi-guarani, casa velha abandonada, como já foi chamada) foi mal-assombrada no passado. Hoje, só o assombro de quem chega desavisado.

Na Casa Azul, as crianças carregam nas mãos uma vassoura do mesmo jeito que empunham uma filmadora. Elas recebem os visitantes no memorial (local que percorremos em palavras nos parágrafos anteriores), escolhem as músicas e contam histórias nos programas da rádio, acompanham a arqueóloga Rosiane em trabalhos de escavação nos sítios arqueológicos, brigam para definir os rodízios de tarefas às vezes (ou quase sempre), organizam a programação do teatro, que já recebeu artistas como Manu Chao, recolhem o lixo do banheiro. Se existe protagonismo infantil, ele mora na Casa Azul.

Entre o parquinho e a biblioteca, meninos e meninas são autoras e autônomas, o que é visível em suas criações, que têm a marca da irreverência das crianças. Quando conheci a Fundação Casa Grande, estavam no auge das paradas de sucesso da Rádio Casa Grande FM as músicas da bandinha de lata Os Cabinha, que reunia um grupo incrível de cinco meninos (Momô, Iêdo, Rodrigo, Artur e Renê). Crias da FCG, eles tocavam na lata, cantavam no gogó sem medo de errar e inventavam composições como Noite de Lua, com versos animados assim:

 

“Um dia, noite de lua
Abri a porta, fui cagar no meio da rua
A bosta endureceu, passou um jipe e furou o pneu
Levaram pra prefeitura, examinaram, era bosta pura
Levaram para o xadrez; se duvidarem, eu cago outra vez”

 

Já li várias definições para o trabalho da Fundação Casa Grande, coisas como uma “escola de comunicação e gestão dos meninos do sertão”. Pra mim, a Casa Azul é um verdadeiro laboratório de experiências de infância – ou para experimentar, viver e habitar com vontade a infância. Laboratório “experimental” esse que nasceu na infância de seu fundador, Alemberg Quindins, que se lembra com fervor de suas criações mirabolantes de menino, inventor de cineminha em caixa de papelão numa cidade onde não chegava nem gibi e repórter das partidas de futebol que rolavam no “campinho do pé-de-pequi”. Sem se apegar a teorias pedagógicas, Alemberg costuma dizer que a Fundação Casa Grande não é espaço de formação, mas lugar de vivência. A Casa Azul é morada da infância.*

Texto: Gabriela Romeu

Foto: Samuel Macedo

* Texto feito especialmente para a publicação comKids Inovação, que pode ser lida na íntegra aqui.

 

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