Artigos, Quintais do Xingu

Crianças do Xingu

“Belo Monte é uma desgraça pra nós, porque tudo que a gente tem ele quer destruir. Ele quer destruir nossa água, tudo o que tem aqui é nosso, e ele quer destruir. A água é o que precisamos mais.” Menino Arara da Volta Grande do Xingu

Com arco e flecha nas mãos, os meninos do povo Arara da Volta Grande do Xingu caçam calangos em seus terreiros assim como seus pais saem para caçar o jantar. Munidos de facões e terçados, entram na mata e colhem paus, que, debaixo de uma mangueira de sombra generosa, são habilidosamente esculpidos e ganham contornos de piões. Entre uma e outra brincadeira, em cenas que evidenciam seus cotidianos registrados pela equipe do projeto Infâncias em maio de 2012, eles desfiam opiniões sobre a usina hidrelétrica de Belo Monte.

O Infâncias é um projeto que registra a vida de meninos e meninas em diferentes lugares do país. Num país com 60 milhões de crianças e jovens, com idades entre 0 e 17 anos, pouco se reflete um retrato da diversidade de infâncias – rurais ou urbanas. Quando retratadas, as crianças dificilmente surgem como protagonistas de suas narrativas. Talvez essa falta de voz (e de protagonismo) esteja diretamente associada à própria origem da palavra “infância”, que vem do latim “infantia” (in = negativo; fari = falar). O termo nasce com a ausência de fala. Mas o projeto surge justamente na contramão desse significado: busca dar voz às crianças.

Na região do Médio Xingu, o projeto Infâncias navega por quintais que se espalham por rios e florestas – e estão em intenso processo de transformação. Em visita a povos indígenas, comunidades ribeirinhas e extrativistas, lança olhar sobre uma série de questões que tem objetivo de dar voz às crianças, evidenciando o que dizem e pensam sobre o lugar onde vivem. Em Altamira (PA), o Infâncias atua em parceria com a Fundação Tocaia, entidade que desenvolve trabalho de arte, educação, informação e difusão cultural.

Em muitos dos lugares por onde o Infâncias circula para registrar as imagens e o imaginário das crianças brasileiras, a situação do mundo adulto é marcada por conflitos sociais, culturais, econômicos, ambientais. Não raras vezes as comunidades com as quais dialogamos têm suas terras ameaçadas ou reivindicam a garantia de direito a seus territórios. Entre tantas questões urgentes, a infância muitas vezes cresce na invisibilidade. Mas nada invisíveis são os saberes infantis.

Quando perguntados sobre os brinquedos que eles mesmos constroem, os meninos de uma comunidade de pescadores de Vila Nova, no município de Senador José Porfírio (PA), logo se prontificaram a nos mostrar a jangada. Munidos com facões e terçados, atravessaram o rio Xingu em canoas para buscar na outra margem matéria-prima de seu brincar num aningal. Manipulando os facões habilidosamente, cortaram a aninga e, à beira do rio e entre mergulhos e risadas, construíram coletivamente o brinquedo. Jangada pronta, vão todos navegar pelas águas.

Rumo ao Alto Xingu, as crianças do povo Araweté apresentam durante uma incursão pela mata, nas proximidades da aldeia, as surpresas guardadas em seu quintal-floresta. A cada parada, uma nova descoberta. A flor da bananeira vira um brinquedo sonoro nas mãos das crianças, que acabam compondo uma sinfonia cheia de sons e gargalhadas. Mais adiante, alguns meninos buscam material para fazer uma canoa e uma voadeira, esta última esculpida rapidamente na mata. Outras meninas tramam pequenos balaios, tecendo imagens de uma criança sabedora de seu quintal.

Os barquinhos surgem também no encontro com as crianças do bairro Açaizal, bairro de palafitas de Altamira que desaparecerá com a criação da usina hidrelétrica de Belo Monte. Dois meninos surpreendem os visitantes com duas voadeiras, uma de aninga e outra de isopor, que ganham motor feito com pedaços de fios e pilhas de brinquedos industrializados. Se o brinquedo é o mesmo, o cenário da brincadeira é bem diverso. É debaixo das palafitas, num fio de água e bastante lixo acumulado, que os meninos do Açaizal fazem navegar seus barquinhos.

Entre jogos de futebol e brincadeiras com taco na aldeia Bakajá, as meninas do povo Xikrin buscam com suas mães barro na beira do rio e modelam bonecas. Assim que o barro seca, elas pintam as filhinhas com o fruto do jenipapo e outras misturas, reproduzindo os grafismos da pintura corporal de seu povo e repetindo a precisão dos gestos de suas mães e avós. O mangará, “coração” da bananeira, também vira bonequinha, pintada e embalada pelas meninas Xikrin.

Pelos quintais do Xingu, os elementos da natureza são matéria-prima do brincar. Pedaços de árvore viram aviãozinho, caroços recolhidos no chão são munição para a baladeira e cipós giram na brincadeira de corda, entre outros tantos brinquedos feitos de natureza. Revelam que a relação da criança com a meio ambiente é de simbiose, consideração que evoca a fala do menino Arara do começo deste texto. E nos leva a questionar: quais impactos ocasionarão as frenéticas transformações desses quintais na vida das crianças da região?*

Texto: Gabriela Romeu e Marlene Peret

Foto: Samuel Macedo

*Parte do texto publicado em livro que resultou de seminário sobre violência sexual contra as crianças na cidade de Altamira (PA), em maio de 2013.

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